terça-feira, 30 de agosto de 2011

babá milão. capítulo II.



Babá era a melhor amiga imaginária de Letícia, que a esta altura já com oito anos, começava a apresentar certa vergonha de se comunicar com a boneca diante dos olhos de sua mãe. Letícia esperava toda noite sua mãe dormir para começar seu bate papo com a boneca de pano. Toda a noite rolava uma espécie de ritual. Letícia vinha da escola, completava suas atividades, brincava, fazia seus deveres, jantava com sua mãe, assistia algum filme, isto é, cumpria sua rotina de afazeres infantis e se jogava na cama. Literalmente. Ela adorava sair correndo e pular sobre as almofadas em um mosh alucinado. Letícia amava o Nirvana e acha o máximo os saltos que o Kurt Cobain dava na platéia. Ela era viciada nos dvds de shows de sua mãe. Sob o edredon ela fingia dormir até o momento que sua mãe fosse para cama. Ao se certificar de que ela estava apagada, a garotinha abria a porta de seu armário, puxava sua gaveta de bonecas para catar a pobre e capenga da Babá. A boneca levantava meio rabujenta e reclamava um bocado. Tal como uma legítima senhora. Reclamava das partes descosturadas, do quão amassada ela se encontrava naquela gaveta:

- pelamor de Deus, Letícia! Tou toda cagada! Vou morrer se eu continuar nessa gaveta cheia de fungos, bactérias e ácaros. Cansei desse meu layout decadente. Boneca de pano é tão anos século XIX! Acho que sequer entre na categoria retrô ou vintage! É por isso que sua mãe tem pavor. Hoje em dia uma figura como eu parece personagem de filme de terror B. Quero ser uma Barbie Milão! Linda, glamourosa, um clássico dos 50! Nesses livros do Harry Potter não tem nenhum feitiço para transferir minha alma para a Barbie Milão, não? Não vai dar para continuar as nossas conversar nessas condições, minha filha.

em seguida, como de praxe, a Babá pedia para abrir a janela e as duas ficavam a observar a lua e as estrelas. Conversavam sobre os mais diversos assuntos e ela, a boneca, sempre pedia para a menina abrir seu pote de balas escondido sob a cama. Babá era viciada em pirulito e quando tinha um na boca sempre divagava sobre a vida, sobre a hermenêutica dos grandes pensadores e dava mil ideias a pequena e super imaginativa Letícia que sempre se deleitava e ria muito com as histórias da boneca. Muitas vezes sua mãe acordava com suas altas e francas risadas. Houve um momento em que a menina começou a levar umas broncas, e a Babá foi parar no quarto de sua mãe.

- Letícia, minha filha, me tira daqui! Não aguento masmorra! Não sou princesa, pelamor de Deus, minha filha! Vou morrer asfixiada! Os tempos de escravidão já acabaram. Me larga dessa corrente, garota! Me transfere logo para o corpo da Barbie Milão. Já te disse que esse é o problema, garota! Tou parecendo o Mummm-Ra! Não é do seu tempo, eu sei, mas em suma, minha filha, é uma múmia! Ai, que depressão esse corpo de boneca velha, menina! he he he. Assim não vai dar não. Esse nome também, hein? Babá... Ai, que não aguento mais essa vida, garota! Daqui a pouco você cresce e o que será de mim nessa estampa?

Todo aquele martírio pelo qual a boneca passava trancada no armário alto do quarto da mãe da menina a deixava muito descontente. Suas conversas com a Babá ficavam muito limitadas. Era preciso ir ao quarto da mãe para escutá-la e era tanto lamúrio que ficava difícil se divertir. Ela tentava uma fuga a qualquer custo.

- Sua mãe, hein, minha filha? Virou uma reacionária, uma fascista. Escrava do sitema. Que horror. Assim não dá. Ela se esqueceu completamente o quanto já falou comigo. E era tão chata. Só poderia mesmo ter se tornado essa adulta repressora. Ai, que horror, menina!

Que triste era para a garotinha, ver sua mais fiel escudeira e confidente e mais! a melhor companheira de aventuras noturnas aprisionada de maneira tão lastimável. Desde então passou a andar meio tristonha e bem mais calada. Sua mãe andava muito estressada e resolveu levar a pequena à casa de seu pai a fim de descansar por uns dias. Ricardo era veterinário e vivia numa agradável chácara na serra. Ele atendia animais domésticos no pet shop em que a coelhinha de raro comportamento se encontrava.

Mãe e filha prepararam as malas. A garotinha tentou colocar a Babá na mala sem êxito. Houve uma pequena discussão em vão. Letícia, a mãe, estava irredutível. A menina choramingou, mas não pôde fazer nada.

- Não liga não, minha filha. Quando você voltar a gente conversa. Me passa um email, qualquer coisa. iiiiii, não tenho como entrar no computador sem você! he he he!! Não se preocupa não. Aproveita para estudar os livros do Potter para tentar me passar para a Barbie Milão. Aí sim, menina, a gente vai se divertir a valer. Deixa eu conseguir entrar naquele seu Porsche, deixa!

As Letícias entraram no carro e seguiram rumo a serra. Foram escutando as músicas de seu set list preferido. A viagem se deu de maneira descontraída e a menina deixou de pensar na sua boneca de estimação. Conversaram muito ao longo do trajeto. Vislumbraram as belezas da mata atlântica e cantaram vários sonzinhos maneiros. Chegando à cidade, foram direto ao pet shop, pois era lá que estava o Ricardo a trabalhar naquele final de tarde. A menina encantou-se imediatamente pelos filhotes e caiu de amores pela coelhinha rebelde e subversiva a primeira vista! Apaixonada por histórias de reis e rainhas logo batizou a bichinha de Margot. Ricardo imediatamente alertou a filha sobre o temperamento arredio daquela coelha. A garota, depois de brincar com todos os filhotes, pegou finalmente a mal humorada Margot no colo. A filhote não se fez de rogada e já exausta de toda aquela criançada deu uma mordida na pequena Letícia e arrancou boas risadas da menina.

- Paiê, me dá essa coelhinha, por favor, paiê!!

Rogava a doce menininha ao pai, de joelhos em sinal de prece! A Margot, que por sua vez, já estava para lá de safa com esse mesmo papo de sempre, não imaginou que seu destino estava a poucos segundos de se transformar. A família resolvera adotar de vez a bichinha que teria tido um dramático destino, caso não saísse logo dali. Margot notou uma movimentação estranha desde que mordera a menininha que fora a primeira e única a soltar uma risada depois de uma de suas malcriações, isto é, uma bela mordida com toda a fúria de seus dentões.

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