quarta-feira, 31 de agosto de 2011

o feitiço vira contra o feiticeiro. capítulo III. margot.



eis que de repente Margot corre para um lado, corre para o outro e vê umas quatro mãos vindo ao seu encontro. Ela se contrai. Fecha os olhos e faz força contra o vidro. Tenta sumir. Em vão. Sente duas mãos a agarrar seu frágil corpinho e em franco desespero tenta escapar do vidro em que estava vivendo. Escorregou inúmeras vezes daquelas pequenas mãos. Ela suava por seus olhinhos arregalados pelo medo. Em poucos segundos tudo o que ela viu foi uma grande escuridão. Ao abrir os olhos: uma cela. O sol quadrado. Ela tem, portanto, a certeza de que morrerá. Lamenta que sua vida tenha sido tão curta e pragueja a vil humanidade. Espera sua sentença. Ouve vozes. Uma criança feliz. Um homem. Uma mulher. Pensa nas leoas do programa de TV. Sente uma tremenda inveja da força daqueles animais e resignada desmaia na gaiolinha.

Uma luz. Muitas flores, vasos de plantas, um lar aconchegante, um chão de madeira. Letícia. A menina de pele alva, cabelos lisos e escuros e rosto delicado sorri para ela e lhe dá uma cenoura. Margot tem certeza de que está no inferno. As mãozinhas da menina tinham esmalte cor de rosa descascado e a tocavam a todo instante. Ela levou um tempinho para entender tudo o que se passava. A semana de férias ia muito bem. Letícia, feliz no casarão de seu pai, sentia-se livre colhendo frutas do pé das árvores, cuidando da sua rebelde coelha e brincando com as outras crianças do condomínio. Tudo isso deixara seus pais bastante satisfeitos.

Enquanto isso, no Rio, Letícia, a mãe, preparava a casa para receber o novo membro da pequena família.

É chegada a hora da filha voltar para casa e agora com o melhor dos presentes: a Margot!

Tudo seguia bem. A menina feliz da vida, com sua coelha arredia, seguia sua dolce far niente vida na mais absoluta paz. Margot se recusava a comer verduras e estava sempre a cata de restos de biscoitos, sanduíches e pedacinhos de pizza que pudessem ser encontrados pelo chão da cozinha ou da sala. Tudo era motivo para alegria, até mesmo um derradeiro incidente durante o jantar. Um dia um copo escapou das mãos da mãe e se espatifou em vários pedacinhos pelo chão. Margot zarpou por entre os cacos de vidro lambendo com agilidade cada gota do restinho de refrigerante. Embevecida a coelha deitou-se no chão após aquela injeção de açucar e relaxou como nunca havia feito antes. A menina, com medo da coelha se machucar, foi retirá-la da zona de risco e escutou, literalmente, Margot falar para ela, com toda clareza, que lhe deixassem em paz num tom rabujento, tirânico e malcriado:

- Ai, garota chata! Me deixa dormir só mais 10 minutinhos! Que saco, aonde eu tô vem você me agarrar. Garota carente, insuportável. Essa separação dos seus pais não te fez bem. Eu, hein. Insolente! Não suportarei tamanha petulância! Ouça bem essas palavras!

As duas se fitaram surpresas e Letícia a largou no chão recebendo em seguida uma tremenda bronca de sua mãe, que chegou a dizer que a menina estava muito estranha e que talvez precisasse de uma psicóloga.

- O que foi, Letícia?! Você largou a Margot no chão?! Mas o que é isso?! Quanta distração! Daqui a pouco vou levar você a psicóloga. Estou preocupada. Não para de falar com aquela boneca velha e agora escuta uma coelha... Ai, meu Deus. Acho que você já está ficando grandinha para isso. Está na hora de ler Maquiavel.

Catatônica, a garotinha passou a apresentar um comportamento um pouco estranho aos olhos de sua mãe a partir desse dia. Margot, ao perceber que a sua dona podia ouvi-la, resolveu tornar a criança seu animal de estimação.

- Ah, então você pode ouvir bem o que eu te digo?! Muito bem, garotinha! Agora quem manda aqui sou eu. Vamos ver quem é o brinquedo de quem! hua hua hua (risadas sinistras). O que temos para hoje? Brigadeiro? Bolo de cenoura com calda quente de chocolate? Traz o menu, menininha!

Sempre temerosa, Letícia cedia aos seus inúmeros caprichos. A fome dela era insaciável! Uma loucura!

- Letícia, traz chocolote? Letícia, mais coca-cola! Ah, traz batata frita e pizza de peperoni. Pega o vinho da sua mãe? Hoje eu tô que tô! hihihi

- Mas acabou, Margot...

- Então pede para a sua mãe ligar para lá e pede outra, ué. Eu, hein. Garota abusada. Chata! Você é uma chata!! Também, com essa mãe não poderia ser outra coisa.

- Mas a mamãe vai achar estranho, Margot!

- A mamãe vai achar estranho você falando comigo, não é? hãhãhã.

Margot só queria saber de porcaria! Ah, ela também adorava escutar um sambinha. Bastava um ziriguidum na caixa de som para que começasse a sambar com a maestria de uma mulata! Toda vez que a Rômula, a cozinheira, ia a casa da família preparar seus pratos incríveis era uma festa para a excêntrica coelha.

- Põe Alcione aí, Rô!! Pô, ela não me escuta! Que horas a Letícia volta da escola, hein?

em realidade, Margot curtia mesmo uma boa fossa. Era dada a emoções muito intensas e a voz da Marrom a conduzia ao mergulho dentro de suas mais profundas emoções: rejeição, abandono + a busca pela superação = Alcione. A Rômula adorava para o deleite da Margot.

A pequena Letícia ficava cada dia mais confusa. Ora sentia um medo muito grande, ora admirava aquela coelha fantástica que podia falar e sambar e muitas vezes ria escondia ao ponto de sentir dores em sua barriga! Geralmente ela tinha os melhores flagras da coelha quando a observava sem ser notada.

- Tá rindo de que? Nunca viu coelho sambar não, ô?! iiiiii ó!! Me deixa ser feliz! Traz uma latinha de cerva aê! ha ha ha!

Apenas a menina via suas travessuras. A coelha não pestanejava. Adorava fazer a garotinha ficar bastante atordoada. Sentia-se poderosa cada vez que a manipulava. Mas também sentia-se orgulhosa a cada risada que arrancava dela. Mal sabia a garotinha que a própria Margot andava confusa. Ela gostava muito de ser admirada pela menina, mas não podia admitir. Um dia ao falar sozinha...

- Coelha idiota!! Você não pode esquecer todas as humilhações que passou. Não pode se deixar seduzir por essas bochechas rosadas e robustas dessa menininha!! Acorda, Margot! Acorda!! Seres humanos não valem nada! É preciso fazer como as leoas ao determinarem quem serão suas presas! É preciso ir adiante!

divagava ela a sós ao andar de um lado ao outro, sem sequer pereceber que era observada. Letícia escutava aquelas palavras escondida atrás da cortina e começava a matutar sobre aquela coelhinha matreira.

A coelha tinha o trânsito livre no apartamento, mas gostava de dormir dentro de sua gaiola aconchegante. Toda vez que a mãe ia dar uma olhadinha na pequena Margot ela se comportava muito bem. Segurava suas verdurinhas com aquele jeitinho beeem fofo e dava uma coçadinha em seu fucinho com suas patinhas charmosas de roedora.

A pobre menina nunca mais havia sido a mesma desde a chegada de seu animalzinho de estimação a sua casa. Passara a ter o sono inquieto e por muitas noites preferiu fechar a porta de seu quarto para que Margot não fizesse alguma de suas chantagens. Ela andava tão magoada, coitadinha. Enquanto tudo isso acontecia a babá continuava trancada no quarto de sua mãe e ela com a maior saudade das sua amigona do peito.

- Droga! Deu tudo errado. Queria um irmãozinho e ganhei uma coelhinha que é malvada. Minha boneca preferida tá presa no armário da mamãe que não me entende e só me critica. Tô com saudade do papai mas ele tá lá longe. Saudade das minhas amiguinhas.

então choramingou até cair no sono...

6 meses depois.

Letícia andava tão cabisbaixa que a coelhinha começou a ter crises de consciência fortíssimas. Margot finalmente estava mais crescidinha. A vida adulta parecia ter despertado seu instinto materno. Seu olhar sobre a ainda pequena Letícia já não era mais o mesmo. Apesar de não aceitar sua condição de bicho de estimação, lembrou-se do quão cuidadosas eram as leoas com suas crias. As imagens daqueles vídeos revisitavam sua memória com cenas mais ternas. Parecia que o instinto maternal de Margot começava a falar alto. Uma noite ela empurrou a porta do quarto da menina enquanto ela dormia e notou que seu sono não estava tranqüilo. Sentindo-se culpada por maltratar a única criaturinha que por ela teve piedade, acabou chegando bem pertinho dela e emocionada lhe fez um carinho.

- Me perdoe, menininha! Estava tão machucada. Fui tão humilhada por tantas outras crianças e seus pais que endureci. Tornei-me um pequeno monstro. Hoje sou capaz de perceber meu engano. Você é tão boazinha.

caiu em prantos a arrependida coelha. Deitou-se ao lado da sua dona e enxugou com as orelhas suas espessas lágrimas. Chorou e chorou até se cansar. Com as mãos em seu barrigão ela foi caindo no sono. Quando estava quase dormindo foi acordada por um movimento da Letícia. Se encolheu todinha e olhou para ela ressabiada. A menina sorriu enquanto sonhava e então a coelha respirou fundo e também sorriu satisfeita pela cena que assistira. Antes de sair do quarto cobriu a garotinha e adormeceu ao lado de sua cama.

No dia seguinte ao acordar sob a força do sol de tão linda manhã, a pequena Letícia não conseguiu acreditar no que viu. Margot de barriga para cima, sobre seu tapete e a roncar em um tão pesado sono. Achou engraçado ter tido um sonho tão bom com a Margot, justo no dia em que acordou em sua companhia. A menina levantou e foi buscar uma fruta na cozinha. Ao voltar encontrou a Margot se espreguiçando com os olhos inchados de tanto sono.

- Bom dia, Margot! Tudo bem? Trouxe suco para você! Você é tão fofinha!

- aaaaaaah!! O que tô fazendo aqui?! Socorrooo!!

- Calma, Margozinha, calma!! Sou eu!!

apavorada a coelha groducha tentou correr para a sala, mas desajeitada se chocou contra a parede. Letícia tentou pegá-la no colo e ouviu um barulho estranho! Era Margot tentando rosnar como um leão sem o menor sucesso.

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